Antes Que o Dia Termine.


sexta-feira, 4 de junho de 2010

Você ouve os outros?



"Sempre vejo anuciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar... Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular.


Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que "... não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma."




Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver é preciso que a cabeça esteja vazia.



Parafraseio o Alberto Caeiro: Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito. É preciso também que haja silência dentro da alma. Daí a dificuldade...



A gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor ... Sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração, e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor ...



Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade. No fundo, somos os mais bonitos ...



O longo silência quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou". E assim vai a reunião. Não basta o silêncio de fora. É preciso silência dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.



Eu comecei a ouvir.



Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. A música acontece no silência. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada.



Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.



Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.



Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto. (O amor que acende a lua, pág. 65)."

Transcrito (Escutatório - Rubem Alves)



E aí? Você já parou para ouvir alguém, hoje?




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