Antes Que o Dia Termine.


domingo, 26 de setembro de 2010

"Eu vivi por um sonho"



Dias desses terminei a leitura de um livro espetacular. Daqueles de tirar o fôlego! Sou uma leitora voraz. Devoro livros e eles me devoram! Permanecem dentro de mim por muito tempo. Fico digerindo, digerindo... Lendo e relendo tudo que aquela leitura representou para mim. São significados e significantes que precisam ser apreendidos e isso leva tempo.

"Eu vivi por um SONHO", de Maria Rosa Cutrufelli, é um romance baseado nos últimos dia de Olympe de Gouges. Para quem não sabe, como eu não sabia, Olympe foi uma mulher, no dizer nordestino "arretada". Explico. Olympe é considerada uma das personagens mais emblemáticas da Revolução Francesa. Ela foi a autora da "Declaração dos direitos da mulher e da cidadã" (14.09.1791). Sou licenciada em História e nunca havia ouvido falar em Olympe, apesar de ter estudado com fervor a Revolução Francesa, um dos fatos mais marcantes da história por ser um divisor de águas, um marco social em pleno século XVIII.

Mas, há uma explicação para não ter ouvido falar nessa mulher-mártir (seu destino foi a guilhotina). É que a história é da humanidade é construída sob o ponto de vista dos heróis. As heroínas nem sempre tem vez e voz. Mas Olympe tinha razão em uma coisa: "as palavras sobrevivem ao sangue que suja inclusive as Revoluções. Não é o sangue, são as palavras que rompem a corrente do destino e introduzem a esperança na História."

A leitura sobre a vida Olympe mostrou a sua coragem para lutar contra o próprio governo que ajudou a constituir, ao perceber que este não correspondia aos seus princípios, quando trocaram o projeto da Revolução - Igualdade, Liberdade e Fraternidade - por um Projeto de Poder, através da implantação de um regime de terror, cujo fim, para aqueles que ousavam se opor, era a guilhotina.
Entre 5 de Maio de 1789 e 9 de Novembro de 1799, o quadro político e social da França foram alterados pelo conjunto de acontecimentos que passou a se chamar de Revolução Francesa. O mais famoso deles, muito conhecido, foi a Queda da Bastilha, encerrando-se com o golpe de Estado do 18 Brumário de Napoleão Bonaparte. O Antigo Regime (Ancien Régime) e os privilégios do clero e da nobreza foram para o brejo.

Tal revolução foi influenciada pelos ideais do Iluminismo e da Independência Americana (1776) e é considerada uma das maiores revoluções da história da humanidade. O mundo mudou depois dela.

Como é de lei, entre os revolucionários surgiram divisões. De um lado, a burguesia, que não queria aprofundar a revolução, apenas garantir as suas conquistas. Tinham medo que o povo quizesse um pouco mais. Por isso, aliara-se aos setores da nobreza liberal e do baixo clero, formando o "Clube dos Girondinos", porque teve como principal representante Brissot, da Gironda. Os Girondinos ocupavam os bancos inferiores no salão das sessões.

Do outro lado, estavam aqueles que queriam mais da revolução, pois entediam que o povo devia ter amis direitos. Eram os "Jacobinos", porque se reuniam no convento de Saint Jacques. Eles eram liderados pela pequena burguesia e apoiados pelos as massas populares de Paris. Ocupavam os assentos superiores no salão das sessões, recebendo o nome de "Montanha". Seus principais líderes foram Danton, Marat e Robespierre. Dentro dos Jacobrinos havia uma facção mais radical, liderados por Jacques Hébert, que queriam o povo no poder.

Existia, também, um grupo de deputados sem opiniões muito firmes, que votavam na proposta que tinha mais chances de vencer. Eram chamados de Planície ou Pântano. Havia ainda os cordeliers (camadas mais baixas) e os feuillants (a burguesia financeira).

Desse momento, surgiram as designações políticas de "direita, centro e esquerda: tendo como referência a mesa da presidência identificavam-se à direita os Girondinos; ao centro, a Planície ou Pântano; e à esquerda, composta pelos Jacobinos, também chamados de Montanha.

Bom, não é difícil imaginar que eles não se entendiam em matéria de política. Os mais radicais, os Jabobinos, reforçados pelas manifestações populares, obtiveram a supremacia na Revolução. O Rei Luís XVI e sua esposa, a famosa Maria Antonieta, perderam a cabeça, literalmente.

Os Jacobinos, com apoio popular e da Comuna de Paris (designação que foi dada ao novo governo local da cidade), assumiram o poder no momento crítico da Revolução.

Agora, eles poderiam dar continuidade ao sonho de uma sociedade livre e igualitária. Será?

Acontece que os líderes, em nome desse "sonho de uma sociedade livre e igualitária", ao chegar no poder esqueceram dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Pois é. Acontece nas melhores (e piores) nações.

Muitos pagaram com a própria vida por se opor ao regime de terror implantado por Robespierre, inclusive aqueles que ajudaram a fazer a Revolução, como Brissot e a própria Olympe. Homens que, por anos e anos, denunciaram o rei e luturam pela república foram presos e condenados à morte, muitas vezes por acusações banais. O que o governo temia? Perder o poder recém conquistado.

Olympe participou intensamente da Revolução, mas se opôs ao partido de sangue, à ruína da legalidade e ao regime de terror de Robespierre, tendo como justificativa a defesa dos direitos do povo. Que nobre, não? Não. Não Mesmo!

Apesar de não poder falar quando se apresentada à Convenção (pois é, a Revolução não permitia, ainda, que as mulheres falassem à tribuna!), ela escrevia textos maravilhosos e ousava dizer o que ninguém queria (ou podia) falar: princípios são inalienáveis; a legalidade não pode ser usada como instrumento para perseguir e matar os outros; o poder não é tudo.

Pensei em nós, pobres mortais. Vivemos por sonhos... incontáveis sonhos. Sonhos de crescer, ser feliz e morrer em paz. Sonhos de um emprego, um bom casamento, uma casa (ou várias), carro, amigos, filhos bem educados. Não necessariamente nessa ordem, é bom dizer! Sonhos nem sempre tão grandes como o de Olympe. Mas, sonhos de ter e saber um lugar ao sol, neste mundo tão disputado!

Admiro Olympe. Admiro sua coerência, suas paixões, sua inteligência. Admiro-a, sobretudo, porque ela não se rendeu à possibilidade de viver em glória. Ela se absteve de conviver com o poder, livre, ao custo de ser prisioneira da sua consciência. Preferiu morrer a deixar que os ideais, pelos quais tanto lutou, se transformassem em meras palavras trepidando em bandeiras.

Ao ler sobre a sua vida e trajetória, sinto renascer as esperanças de que é possível defender um ponto de vista, sem abrir mão da nossa fidelidade e dos nossos ideais. Defender projetos e ideais sem derramar sangue. Lutar sem pegar em armas, sem sacrificar vidas, estejam elas de que lado for. Governar, sem se corromper com as glórias que este mundo oferece.

É um sonho. Vivamos por ele, então. Se tivermos coragem.

domingo, 5 de setembro de 2010

Pois os dois se olharam e se apreenderam

"Antes porém tratou de olhar muito bem olhado o seu adversário, respeitando a coragem daquele Príncipe que, mesmo sem saber muito bem por quê, não parava diante de nenhum OBSTÁCULO.

- Agora você vai ver! - ameaçou o Dragão.
Talvez fosse mais certo ele dizer:
- Agora é que eu vou ver!

Porque bem na hora da ameaça, ele acabou de arregalar o olho que ainda estava um pouco coberto pela pálpebra de nuvem.
Aí ele viu o Príncipe. E o Príncipe VIU a Moça.
Que Moça? Ora, a Pastora, você está ficando esquecido? Não lembra que ela tinha ficado por ali para OLHAR e tratar de aprender? Pois os dois se olharam e se apreenderam. O Príncipe viu a Pastora por entre as árvores, na luz do olhar do Dragão, e pensou que de manhã, quando tinha falado como ela na aldeia, nem tinha reparado como ela era tão bonita. Talvez de manhã ela nem fosse ainda tão bonita, porque a verdade é que todos os acontecimentos do dia tinham ajudado muito a Pastora a NÃO ESCONDER MAIS SEU OLHOS E A LEVANTAR A CABEÇA - e ela, como todo mundo, ficava muito mais bonita assim.
Mas, o Príncipe não sabia disso. E pensou que a beleza dela era por causa do olho do luar do Dragão. Aí perdeu a vontade de liquidar o Dragão. E de casar com a Princesa.
Ficou parado olhando a Pastora. Ela olhou firme para ele e perguntou:

- Vossa Alteza não está se sentido bem?
- Nunca me senti melhor em minha vida. A não ser por esta droga de armadura toda molhada.
- Então tira a armadura - sugeriu ela.
- Mas eu preciso dela para lutar com o Dragão.
- Para quê? Para casar com a Princesa e viver feliz para sempre? Para ter sempre um sol eterno?
- Para cumprir minha missão e terminar o que comecei - respondeu o Príncipe, enquanto pensava que, na verdade, não queria saber de coisas eternas nem iguais para sempre.
E FICARAM SE OLHANDO."

(Maria Clara Machado in Uma história meio ao contrário.)

Quando li esse clássico de Maria Clara Machado para a minha filha, fiquei encantada com essa passagem, lida e relida várias vezes.
É que, de vez em quando (ou quase vezes), caimos na tentação de nutri uma visão do outro e do mundo a partir de um reflexo da "posição" que julgamos ocupar na vida.
Passamos a "olhar" sempre tendo como referência o que somos ou o que achamos que somos. Qual o problema? Não é assim mesmo que deve ser? Depende. Julgo que, para amar o outro, como Cristo nos ensinou, é preciso ver além... da posição social, da aparência, da cor da pele, das condições financeiras, do modo de pensar, das opiniões, do credo... enfim, além de nós mesmos, das nossas certezas e verdades "absolutas".

Confesso que, para minha alegria, minha opinião sobre o assunto consolidou-se com a leitura de um livro maravilhoso, que tive o privilégio de ler recentemente: A elegância do ouriço, de Muriel Barbery.

Leitura obrigatória para aqueles que desejam procurar as pessoas, sem renunciar ao encontro, reconhecê-las como seres singulares e apreendê-las. As pessoas não precisam ser o nosso próprio reflexo. Se as enxergamos assim, só veremos o vazio.