Antes Que o Dia Termine.


domingo, 5 de setembro de 2010

Pois os dois se olharam e se apreenderam

"Antes porém tratou de olhar muito bem olhado o seu adversário, respeitando a coragem daquele Príncipe que, mesmo sem saber muito bem por quê, não parava diante de nenhum OBSTÁCULO.

- Agora você vai ver! - ameaçou o Dragão.
Talvez fosse mais certo ele dizer:
- Agora é que eu vou ver!

Porque bem na hora da ameaça, ele acabou de arregalar o olho que ainda estava um pouco coberto pela pálpebra de nuvem.
Aí ele viu o Príncipe. E o Príncipe VIU a Moça.
Que Moça? Ora, a Pastora, você está ficando esquecido? Não lembra que ela tinha ficado por ali para OLHAR e tratar de aprender? Pois os dois se olharam e se apreenderam. O Príncipe viu a Pastora por entre as árvores, na luz do olhar do Dragão, e pensou que de manhã, quando tinha falado como ela na aldeia, nem tinha reparado como ela era tão bonita. Talvez de manhã ela nem fosse ainda tão bonita, porque a verdade é que todos os acontecimentos do dia tinham ajudado muito a Pastora a NÃO ESCONDER MAIS SEU OLHOS E A LEVANTAR A CABEÇA - e ela, como todo mundo, ficava muito mais bonita assim.
Mas, o Príncipe não sabia disso. E pensou que a beleza dela era por causa do olho do luar do Dragão. Aí perdeu a vontade de liquidar o Dragão. E de casar com a Princesa.
Ficou parado olhando a Pastora. Ela olhou firme para ele e perguntou:

- Vossa Alteza não está se sentido bem?
- Nunca me senti melhor em minha vida. A não ser por esta droga de armadura toda molhada.
- Então tira a armadura - sugeriu ela.
- Mas eu preciso dela para lutar com o Dragão.
- Para quê? Para casar com a Princesa e viver feliz para sempre? Para ter sempre um sol eterno?
- Para cumprir minha missão e terminar o que comecei - respondeu o Príncipe, enquanto pensava que, na verdade, não queria saber de coisas eternas nem iguais para sempre.
E FICARAM SE OLHANDO."

(Maria Clara Machado in Uma história meio ao contrário.)

Quando li esse clássico de Maria Clara Machado para a minha filha, fiquei encantada com essa passagem, lida e relida várias vezes.
É que, de vez em quando (ou quase vezes), caimos na tentação de nutri uma visão do outro e do mundo a partir de um reflexo da "posição" que julgamos ocupar na vida.
Passamos a "olhar" sempre tendo como referência o que somos ou o que achamos que somos. Qual o problema? Não é assim mesmo que deve ser? Depende. Julgo que, para amar o outro, como Cristo nos ensinou, é preciso ver além... da posição social, da aparência, da cor da pele, das condições financeiras, do modo de pensar, das opiniões, do credo... enfim, além de nós mesmos, das nossas certezas e verdades "absolutas".

Confesso que, para minha alegria, minha opinião sobre o assunto consolidou-se com a leitura de um livro maravilhoso, que tive o privilégio de ler recentemente: A elegância do ouriço, de Muriel Barbery.

Leitura obrigatória para aqueles que desejam procurar as pessoas, sem renunciar ao encontro, reconhecê-las como seres singulares e apreendê-las. As pessoas não precisam ser o nosso próprio reflexo. Se as enxergamos assim, só veremos o vazio.

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